Cada tempo, uma ação. Iniciou, recentemente, a demolição de uma casa icônica localizada no centro de Canela. Tenho boas lembranças dela, de quando criança e adolescente, por ter frequentado, algumas vezes, o seu interior por ser amigo dos filhos do casal de proprietários. Tínhamos uma pequena banda incipiente, inspirada na onda beatlemania, motor da juventude nos primeiros anos da década de 1960. Ali, na sala daquela bela residência, fizemos uma apresentação do nosso grupo por ocasião do aniversário da filha. Orgulhosos e confiantes, cantávamos as músicas da época com nossas guitarras jurássicas e amplificadores ligados em rádios de válvulas.
Era muito aconchegante, com uma cozinha de onde saíam almoços formidáveis e uns inesquecíveis bifes à milanesa, aos quais chamávamos de “bifes dourados”, preparados com maestria pela anfitriã. Era uma época de construir futuros, e, passados poucos anos, cada um direcionou-se para um lado, uma profissão, novas famílias e a morada ficou apenas com o casal. O tempo foi seguindo seu curso e a morte levou três, dos quatro que a ocupavam no meu tempo. Ela parou. As janelas, sempre alegres e parecendo olhos abertos para ver o dia, não piscaram mais. O gramado cresceu, o jardineiro diminuiu sua presença, a língua-de-vaca, grama e picão-preto assumiram a horta, abelhas habitaram a chaminé e a alegria do local seguiu junto com os falecidos.
Agora, tudo ali está mudando. Os olhos dela já estão sendo retirados, as madeiras internas, encharcadas da história da família, já foram removidas, o telhado começa a desvestir-se. Tudo ao ritmo da desconstrução. Sem as telhas e janelas, a história se evola, seguindo um curso desconhecido. Para onde vão as lembranças? O cheiro e o gosto daqueles bifes dourados ainda persistem em mim, assim como o som tosco das nossas guitarras, com o chiado dos rádios/amplificadores, ressoam.
A desconstrução é um processo tão natural como a construção. Isto é visto na natureza diariamente. Anos, décadas para formar um organismo, seja uma planta, um fungo ou um animal, e chega a hora da reciclagem, uma espécie de desmonte do organismo, fazendo suas partes constituintes voltarem a servir outros organismos. Nela, vejo o mesmo, e, na minha percepção, morreu e está em processo de decomposição. Suas telhas, tijolos, madeiras, aberturas, portas e o mais possível serão aproveitados e transformados em um novo lar, em outro local, com outra história, sendo a anterior totalmente apagada.
A tristeza sobrevém àqueles que foram contemporâneos dela, mas, se pensar em quem dava vida à velha casa, constato que a ausência deles é determinante e, mesmo que muito esforço seja dispendido para mantê-la, nunca mais será a mesma. Tempo de construir, tempo de desconstruir, tempo de reconstruir. Assim é a vida, em cada tempo, uma ação.