Fotos: Nêmora Pauletti Prestes
A minha vida de papagaio, desde quando a minha memória consegue me contar, começou num ninho em um buraco de árvore velha, bem alto e seguro, onde não entrava chuva nem vento. Depois, vim a perceber a importância destas árvores velhas para nós, porque nelas existem estes buracos no tronco provocados por um galho caído há muito ou por insistentes bicadas de pica-paus atrás de larvas comedoras de madeira. São preciosos estes locais e muito disputados por diversas aves, por isso que não gostamos quando o homem as derruba para lenha, achado que não servem mais para nada. Servem sim, e muito.
Cresci recebendo, várias vezes por dia, comida vinda diretamente do bico dos meus pais e logo aprendi que, fora daquele local quente e confortável, havia uma grande variedade de tipos de sementes, frutos e brotos que me eram trazidos. Logo emplumei e comecei a querer espiar o lado de fora. Via aquela luz que entrava e queria saber o que era, mas ainda não conseguia me alçar até a borda. Via meus pais chegarem e saírem muitas vezes por dia naquele estafante trabalho de trazer comida para nós, que éramos três.
Quando consegui reunir forças suficientes, alcei o corpo e, como bico e as patas, escalei a parede do ninho até a sua borda. Vi, naquele momento, o mundo lá fora. Era verde e fresco, com muita luz e aromas, sons novos e outras aves diferentes de nós. Fiquei espantado e com medo, mas encantado e motivado a logo poder sair, como os meus pais faziam. Mais um tempo passou e comecei a bater asas para treinar o voo, que me fascinava pela possibilidade de voar. E quando chegou o dia, foi emocionante. Na beira da porta de entrada, treinei um pouco a batida de asas e me joguei no ar praticando o que via os outros fazerem. Fui meio torto, meio sem rumo, e logo percebi que a cauda auxiliava na direção. Voei até um galho próximo e parei. Emocionado e confuso, mas com muito tesão, resolvi empreender um voo mais longo e fui voando, voando, voando e percebi que havia muitos papagaios iguais a mim por todo o lado, alguns mais velhos como meus pais e outros calouros como eu.
Seguiram-se os dias e eu voava cada vez com mais precisão, sempre seguindo o bando maior. Meus pais e irmãos se misturaram àquele grupo e aí entendi que minha família, agora, era o bando. E assim, de repente, ganhei dezenas de pais e irmãos e eram tantos que não conseguia contar. Aprendi logo a me alimentar sozinho, olhando o que os outros faziam e comiam. Brotos de folhas de araucária, frutas de muitos tipos e sabores, sementes de uma grande variedade, tudo ali, bastando conhecer e pegar.
Chegou um momento em que o bando começou a voar para longe e não retornar ao dormitório habitual. Lembro que era mais frio e que muitas árvores já tinham suas folhas coloridas e caíam ao solo, deixando os galhos nus. Voamos muitos dias para o norte até chegarmos em uma área com um imenso pinhal onde as pinhas já mostravam, pela coloração e tamanho, que estavam maduras. Logo aprendi, com meus amigos, a escolher a pinha e dela retirar as preciosas sementes – os dourados e saborosos pinhões. Que gosto e que energia que havia naquela pequena embalagem dourada!
Aquele voo longo, percebi, era para nos trazer a este precioso local, onde ficamos por alguns meses, aqueles mais frios e de dias curtos. Quando o pinhão acabou e todos estavam bem alimentados, retornamos para o sul. Reconheci, logo, a floresta onde havia nascido e, por instinto, encontrei entre os milhares de irmãos, um parceiro para procurar um novo oco de árvore e, quando me dei conta, estava colocando ovos. Sim, eu era uma fêmea e agora entendia o nosso ciclo. Nascer, crescer, comer, acasalar, criar e sair para o mundo.
(Nota: o papagaio-charão é a única espécie migratória, que utiliza as matas do Rio Grande do Sul para se reproduzir e as matas de araucária de Santa Catarina para se alimentar no inverno.)