O sal sempre foi importante na culinária, principalmente para realçar os sabores dos diversos alimentos. Ele também teve um papel muito importante na história do Rio Grande do Sul durante os séculos XVIII e XIX, período áureo das charqueadas localizadas próximas das margens do Rio Pelotas, na cidade homônima. A abundância do gado xucro que havia no Pampa, legado deixado pelos espanhóis que por aqui viveram, fornecia a matéria prima necessária para esta incipiente indústria.
Preservar a carne para consumo posterior e a capacidade de transporta-la para outros mercados, com segurança e qualidade, foi o que tornou o charque um produto cobiçado e de grande valor, devido a inexistência da refrigeração, como hoje. Sangrar, tirar o couro e eviscerar um boi, era coisa rápida, feito por gente escrava com destreza e conhecimento do ofício. Depois era fazer as mantas de carne e salgar tudo muito bem para desidratar e escapar das moscas, fungos e bactérias. Uma vez seca, a carne salgada podia, então, ser armazenada e consumida por até um ano, mantendo seu teor de gordura e proteína.
Recentemente, visitei uma destas lendárias fazendas localizada em Pelotas, conhecida como Charqueada São João, construída em 1810. Local com cheiro de história, logo me cativou pela mistura de natureza, paz e aquele rastro visível de que ali, num outro tempo, teve uma intensa atividade pastoril que exigiu muito dos donos da terra e seus escravos. Por todo lado encontro páginas abertas da história local, que vão contando tudo, sem perder detalhes, através de letras, palavras e frases que são expressas em um conjunto de detalhes, como se fosse um livro de história a ser lido com vagar e sabor.
Vejo informações no formato das telhas de barro, moldadas nas coxas de escravas; no tamanho pequeno dos vidros das janelas, que denuncia a riqueza dos proprietários; nos objetos antigos de ferro, utilizados para sangrar o gado ou subjugar os escravos rebeldes e fugidios; nos quartos com duas portas internas que facilitavam a fuga dos residentes e confundia eventuais assaltantes; no encantador rio Pelotas, que já foi um rio vermelho de sangue e vísceras dos milhares de bovinos abatidos; aprecio, nas grandes figueiras multisseculares, seu caráter de testemunhas mudas do antes, durante e depois deste rico ciclo econômico do charque, couro e sebo que se estendeu por 150 anos. Vi, ali, o pequeno quarto que recebeu, por uma semana, o naturalista francês August Sait Hilaire, renomado botânico que andou pelo Rio Grande do Sul em 1820 e que descreveu, para a ciência, a planta da erva-mate, dando-lhe o nome de Ilex paraguariensis.
Andar por ali e ver o que hoje sobrou da bela casa da pioneira família de Antônio José Gonçalves Chaves, da senzala dos escravos, do rio, das figueiras e paineiras testemunhas, permite que eu recrie uma época em que o sal, aqui no Sul, era a mola da economia, pois conseguia desidratar a carne e conserva-la por longo período de tempo. Ainda hoje se utiliza esta carne salgada para o preparo do autêntico prato consumido pelos gaúchos que vagavam pelo Pampa. É uma receita chucra, com gosto de história e conservada pelo tempo na culinária do sul: charque, arroz, graxa e sal – o famoso carreteiro.